terça-feira, 25 de novembro de 2008

A integração europeia e o caso americano

Os opositores ao alargamento e reforço da União Europeia utilizam com frequência o mesmo argumento: insolúveis diferenças entre os Estados-membros impedem um maior aprofundamento do processo de integração europeia. A diversidade geográfica, demográfica, cultural, religiosa, institucional e linguística dos países europeus impossibilita a criação de um laço político semelhante ou sequer próximo aos Estados Unidos da América.

Este argumento assenta num princípio falacioso, uma vez que ao contrapor o caso europeu ao exemplo americano assume que este último foi construído sobre um consenso generalizado. Ora, a diversidade – que os europeus tanto pretendem reclamar como sua propriedade exclusiva – era na verdade dominante entre os Estados americanos quando a sua União ganha forma.

As assimetrias geográficas e demográficas entre os Estados americanos eram gritantes. A Virgínia ocupava 1/6 do território e era cerca de sessenta vezes maior que Rhode Island. As distâncias eram impressionantes, num período em que a carroça era o meio de transporte mais utilizado. A maioria dos americanos vivia num meio rural, mas já havia grandes cidades (Filadélfia, Nova Iorque, Charleston). A população da Virgínia era doze vezes superior à da Geórgia. Em Filadélfia viviam mais pessoas do que em todo o Estado do Delaware.

Naturalmente, existiam riquíssimas diferenças culturais e religiosas. Oriundos de vários países europeus, os colonos trouxeram consigo múltiplas crenças e tradições. No Massachusetts predominavam os Puritanos, na Pensilvânia os Quakers, em Rhode Island os Baptistas, no Connecticut os Presbiterianos, na Virgínia os Anglicanos, em Maryland os Católicos. Existiam incontáveis seitas. Os costumes de um comerciante de Filadélfia e de um proprietário de Richmond eram tão diferentes que, não fosse o facto de ambos falarem inglês, dir-se-ia que seriam perfeitos estranhos.

A vida económica dos Estados americanos não podia ser mais díspar entre si. O Sul, esclavagista e aristocrático, vivia sobretudo da exportação de algodão e tabaco para a Europa. O Norte, industrial e empreendedor, apostava na pesca e nos bens manufacturados. As relações comerciais entre os Estados eram mínimas. Na verdade, dois terços das trocas ocorriam com a Grã-Bretanha e com a França. Não existia uma moeda comum.

As diferenças institucionais levariam um estudante de ciência política à exaustão. As constituições estaduais incluíam sistemas bicamarários e unicamarários, assembleias muito numerosas ou incrivelmente restritas. O poder executivo era conferido ora a um Governador nomeado pela Legislatura, ora a um Presidente eleito, ora a um conselho senatorial. A duração dos mandatos oscilava entre um e seis anos. O direito de voto variava de tal forma que em Nova Jérsia as mulheres votavam e na Geórgia um proprietário de pequena dimensão não o podia fazer.

Não havia um sistema judicial homogéneo. A educação estava a cargo dos condados e era igualmente díspar. Não existia um exército comum.Os Estados americanos nunca haviam conhecido qualquer tipo de vínculo político anterior aos eventos revolucionários e, de um modo geral, era estranho à população um sentimento propriamente nacional. Os indivíduos eram “habitantes dos Estados”. Falava-se da América e da revolução americana, mas a figura de um povo americano era uma ideia bizarra.

Em síntese, nos anos decisivos da fundação dos EUA (entre 1770 e 1790) existiam entre os Estados mais diferenças do que semelhanças. E, no entanto, essas divergências não impediram a criação da primeira república federal moderna. O que aconteceu, então? Empenho de um pequeno grupo de figuras públicas que arriscaram as suas carreiras estaduais porque sonhavam com uma grande nação. Crença num projecto que poderia conciliar as diferenças e harmonizar dinâmicas e interesses distintos. Vontade política, em suma.

Neste caso, o que falta à Europa? Essa mesma vontade política. Esse mesmo empenho. E a disponibilidade e honestidade intelectual para perceber que a diversidade não é um obstáculo, é uma benção.

4 comentários:

Anónimo disse...

Uma muito boa síntese.

Precisa-se de gente que saiba e partilhe o conhecimento.

José Gomes André disse...

Obrigado pelo comentário! Volte sempre!

Anónimo disse...

"não fosse o facto de ambos falarem inglês(...)"

A verdade é que me parece que o facto de existir lingua única tem uma importância política brutal em toda a construção dos EUA. A dimensão popular que a constituição americana obteve durante a sua aprovação, através da imprensa escrita, é paradigmática da importância da lingua única.

Afonso

José Gomes André disse...

Caro Afonso, é indiscutível que o factor "língua comum" foi determinante e em particular na questão que referiu. Contudo, existiam de facto divergências substanciais noutros domínios, a meu ver talvez mais relevantes (a questão económica ou a divergência monetária, por exemplo).

Por outro lado, fazendo o paralelo com o caso europeu, não poderíamos dizer que há hoje também já uma proximidade linguística assinalável? O francês é falado e/ou compreendido por quase metade da UE; o alemão por 100 milhões de habitantes (em pouco mais de 400); e já nem falo do inglês, autêntica língua franca dos nossos dias...

Um abraço e volte sempre!